Políticas públicas e a moralidade dos vícios modernos

Muitos gestores públicos, em todas as esferas de poder, se veem hoje às voltas com a delicada questão da dependência química. Há muitos caminhos para lidar com esse problema, desde o combate ao tráfico de drogas, até a elaboração de políticas para tratamento das pessoas subjugadas pela drogadição. De um modo ou de outro, cada governante ou legislador adota seu discurso e suas práticas para dar atenção, mesmo que mínima, ao tema.

Isso que se acabou de dizer é facilmente verificável quando está em pauta o uso indiscriminado de substâncias ilícitas, mas quando se fala da compulsão por determinados comportamentos relacionados à tecnologia, dentro do espectro que podemos chamar de “vícios modernos”, as autoridades costumam se calar.

Dando materialidade ao que seria o vício moderno, vejamos alguns casos em que isso se
verifica:
a) Contato frequente com smartphones, ao longo de centenas de sessões de uso por dia,
para aplacar o medo de ficar desatualizado em relação às mídias sociais, o que
redunda em diminuição das interações no mundo real;
b) Navegação errante pela internet por horas a fio, seja em casa ou no ambiente de
trabalho, com prejuízo à produtividade pessoal e corporativa;
c) Consumo recorrente de sites de conteúdo pornográfico, levando consequentemente à implosão da vida afetiva;
d) Imersão em partidas de jogos digitais em longos turnos, comprometendo trabalho,
estudos e o sono.

Esses e outros comportamentos são comprovadamente nocivos ao indivíduo e ao tecido social, seja pelo dano direto causado, seja por desvios nos bastidores. A pornografia, por exemplo, sustenta uma cadeia de produção bilionária que tem sido investigada por lucrar com a exploração sexual de mulheres e menores de idade. De modo análogo, as grandes corporações responsáveis pelas ferramentas de mídias sociais têm frequentado os tribunais sob a acusação de invadir a privacidade de seus clientes, com o intuito de vender seus dados.

A razão para que os novos vícios, diferentemente dos antigos, fiquem de fora das políticas públicas está no argumento de que a dependência da internet ou de qualquer outro recurso lícito representaria um mero desvio moral subjetivo. Dessa maneira, a responsabilidade pelo problema competiria a cada cidadão, e Estado ficaria confortavelmente isento de dolo.

Com o conhecimento de que dispomos hoje, essa postura não tem mais o menor cabimento. Já está claro que as grandes empresas de tecnologia fomentam os vícios modernos e deles dependem para turbinar os lucros e agradar aos seus acionistas. Logo, trata-se de questão comercial e de saúde pública, muito mais do que um debate moralista.

Como antítese a isso, as autoridades devem resguardar os interesses população e exercer um papel regulatório que preserve a liberdade individual, mas proporcione instrumentos para diminuir o contingente de pessoas tragadas sutilmente pela dependência.

Nos Estados Unidos, foi proposta recentemente uma lei que vai nessa direção. O texto prevê que os provedores de acesso à internet só liberem conteúdos adultos após a assinatura de termo de solicitação específico pelo cliente – como resultado, espera-se que diminua sensivelmente o acesso de menores de idade a pornografia on-line.

Ao que tudo indica, o dispositivo americano rende um bom debate e poderia incentivar ações semelhantes em outras paragens, inclusive no Brasil. Há que se ressalvar, contudo, que enquanto se tentar enquadrar os vícios modernos numa grade de “moral/imoral”, ou “certo/errado”, o problema continuará a se agravar e a solução ficará cada vez mais distante.

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