A Doida de Carlos Drummond de Andrade e as Aplicações sobre nossa Realidade

Ler bons livros, apreciar artes e ouvir boas músicas desenvolvem em nós uma capacidade mais acentuada de perceber o mundo a nossa volta. A leitura sempre exerceu e exercerá profunda transformação no leitor sincero que reconhece que pouco sabe, e que mesmo sob esse pouco, existe uma imensidão a ser considerada. A sensibilidade torna-se aguçada no exercício da leitura e a percepção do que acontece ao entorno é endossada por esse contínuo exercício.

Poucos livros, contos, poesias ou crônicas causaram tamanha reflexão quanto O Capote de Nikolai Gogol (1991) e A Doida de Carlos Drumond de Andrade (2012). Sobre esse segundo conto, lembro-me emoção e responsabilidade que senti ao ler as linhas escritas, e mesmo bem jovem, não pude conter algumas lágrimas. Esse conto nos relembra de que somos responsáveis por ser pessoas melhores, destituídos dos preconceitos que nos afastam uns dos outros pelo medo de simplesmente saber ouvir o que o outro tem a dizer, uma vez que se tem dado cada vez mais lugar a propósitos egoístas que tornam semelhantes apenas aqueles que compartilham das mesma ideologias e propósitos.

Jamais farei jus às palavras do poeta, mas tentarei explicar em breves linhas porque esse conto ainda hoje remete ao mesmo sentimento de 14 anos atrás. Ela era chamada de doida e habitava num chalé no centro de um jardim maltratado. Próximo dali, havia um córrego onde os meninos da vizinhança costumavam se banhar, mas não apenas com essa intenção, era prazeroso passar pela casa da doida e provocá-la. As mães exortavam as crianças sobre suas atitudes reprováveis: “dos doidos devemos ter piedade, porque eles não gozam os mesmos benefícios que nós, os sãos, fomos afortunados” (ANDRADE, 2012).

Muito se especulava sobre o que deixou a doida naquele estado: agressão conjugal? Fora expulsa de casa pelo pai por tentar envenená-lo e enlouqueceu? De qualquer modo, nada se sabia sobre, apenas que era repudiada por todos e que se trancara no chalé com o passar dos anos. Vivia só e julgada. Porém naquela tarde, os três meninos rumo ao rio, acreditaram pertinente repetir a tradição que seus pais a muitos anos atrás também fizeram: jogar pedras na casa da doida.

Nada respondia ao ardente ataque daquelas crianças: nem a casa nem a doida. Tomado por súbita coragem, o terceiro do grupo, um menino de 11 anos resolveu invadir o jardim. Como nada nem ninguém respondeu aos avanços, resolveu ser corajoso e adentrar o chalé.

Drummond (2012) continua:

Atrás da massa do piano, encurralada a um canto, estava a cama. E nela, busto soerguido, a doida esticava o rosto para a frente, na investigação do rumor insólito. Não adiantava ao menino querer fugir ou esconder-se. E ele estava determinado a conhecer tudo daquela casa. De resto, a doida não deu nenhum sinal de guerra. Apenas levantou as mãos à altura dos olhos, como para protegê-los de uma pedrada. Ele encarava-a, com interesse. Era simplesmente uma velha, jogada num catre preto de solteiro, atrás de uma barricada de móveis. E que pequenininha! O corpo sob a coberta formava uma elevação minúscula. Miúda, escura, desse sujo que o tempo deposita na pele, manchando-a. E parecia ter medo.

Ela balbuciou: tinha sede. O menino deu-lhe água, mas nem forças para segurar o copo ela possuía. Ele precisou ajudar. Ela estava com dor e parecia estar morrendo. Ele nem mais se lembrava porque entrara na casa. E doida já não parecia mais doida: era um ser humano. Ela sofria, e ele mal compreendia a situação. Precisava pedir ajuda, mas recusava-se a deixá-la só: “exitava deixar a mulher sozinha na casa exposta a pedradas”. Receava que morresse em completo abandono. “Não deixaria a mulher para chamar ninguém. Sabia que nada poderia fazer para ajudá-la, a não ser sentar-se à beira da cama, pegar-lhe nas mãos e esperar o que ia acontecer (ANDRADE, 2012).

Esse texto literário breve, é repleto de significados e implica reflexões sobre o eu. Cada leitura dele, é um lembrete de que precisamos nos destituir dos vícios que carregamos em nossa vida e que nos afastam de sermos pessoas melhores, pessoas virtuosas. Enquanto vivemos acreditando em ideologias de senso comum, tomando por nossos os discursos prontos, falácias maquiadas de boas intenções, acusamos como doidos aqueles que ousam discordar daquilo que chamamos de “nossa verdade” e na tentativa de defender uma tradição que nem compreendemos, atacamos com pedradas esses doidos que ousam pensar diferente.

Contextualizando os sentidos mais profundos do conto, palavras que muitas vezes tomam forma de pedras são desavisadamente lançadas contra o outro, minando qualquer oportunidade de diálogo, mútua compreensão e empatia. Nesse cenário notadamente comum em nossos dias, uma postura compreensiva e empática é praticamente uma proibição: após longos anos acreditando que o entrincheiramento de ideias é a melhor maneira de (não) se resolver as coisas, parece que esse virou costume, de costume passou a ser verdade, e de verdade, virou tradição. Porque fazemos o que fazemos? Porque todos fazem e achamos que é melhor assim.

Nesse momento, precisamos criar certa coragem para sair de trás das trincheiras que separam uns dos outros, passar pelo jardim abandonado do inimigo e abrir a “cancelinha”, entrar na casa e enxergar quem ali reside. É preciso também coragem para soltar as pedras, estender as mãos e olhar nos olhos.

Não são doidos, mas sim humanos. Podemos notar que a atitude parentética do menino de 11 anos o fez compreender uma outra perspectiva, uma vez, que caso continuasse a jogar pedras do lado de fora jamais poderia ter entendido. Ultrapassando as convenções sobre a casa da doida e tudo que a rodeava, ele deu o primeiro passo. Sobre a atitude parentética, Guerreiro Ramos (1996) atribui como a capacidade de colocar entre parênteses o eu e o mundo e a vivência do eu como tal. Agindo assim, cria-se a consciência crítica de si e das circunstâncias, abandonando o plano existencial natural e ingênuo.

Criar e praticar essa consciência crítica de si e das circunstâncias exige humildade de reconhecer que certas crenças e costumes podem estar equivocados. Após 40 anos de crenças sobre a louca, o menino percebeu que ela era apenas uma velha frágil, pequena e maltratada – por ele e por tantos outros. Que dura realidade. Um equívoco que se sustentou por longos anos. Quem de fato eram os doidos? Quem de fato são os doidos? O exercício das virtudes e a prática da postura parentética podem começar a responder essa pergunta.

Referências:

RAMOS, G. A. A redução sociológica. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1996.

ANDRADE, D. C. A doida. Contos de aprendiz. Companhia das Letras; Edição: 1ª. 5 de março de 2012

Back To Top